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02/10/2016
Por: Equipe Fundo Dema
Assunto: Notícias
Leitura: 7 minutos

Farmácia Viva amplia a assistência à saúde

Por Élida Galvão

Localizado às margens da Rodovia Transamazônica, a 245 km de Altamira e 305 Km de Santarém, o município de Placas contabiliza uma população estimada em 29.366 habitantes[1]. A formação da cidade teve início na década de 70, em tempos de ocupação da Amazônia para a exploração econômica do território a partir do Plano de Integração Nacional (PIN). Sua denominação foi firmada devido ao grande número de placas existentes em determinado trecho da rodovia, para orientar a divisão entre Altamira e Itaituba.

Inicialmente, o território de Placas foi integrado ao município de Santarém. Com a expansão populacional, em 1993 a cidade conquistou sua emancipação e foi elevada à categoria de município. A instalação da sede só ocorreu anos depois, em 1997, com a eleição do primeiro governante municipal.

Placas foi crescendo com grande desestruturação de políticas públicas e programas sociais voltados às necessidades da população. Com uma situação social bastante fragilizada, a ação de agentes populares de saúde, que atuam no tratamento preventivo e curativo de doenças, passou a fazer parte do cotidiano da população.

Os medicamentos naturais são feitos com sementes, raízes, essências oriundas de quintais cultivados organicamente

D. Maria da Conceição integra as estatísticas dos milhares de brasileiros que migraram para a Amazônia atraídos pela promessa de melhoria de vida. Junto com seu companheiro, a senhora de 62 anos saiu do Piauí com a esperança de ampliar as possibilidades de uma vida promissora na região que alardeava o desenvolvimento nacional e a distribuição de terras. Porém, ao chegar em Placas, a realidade a convocou para a atuação voluntária.

“Quando cheguei, Placas era somente uma comunidade. Ainda não era emancipada. Na época, o presidente da comunidade procurava uma pessoa que entendesse de saúde pública e não havia ninguém””, relembra D. Maria que, enquanto auxiliar de enfermagem, era a única pessoa na comunidade com noções de saúde pública. Sem contar com outros profissionais de medicina na cidade, ela fazia o papel de médica, enfermeira, cirurgiã, anestesista, tudo de forma muito corajosa.

Chamada para cuidar dos doentes, ela foi encaminhada a Santarém para uma temporada de qualificação profissional. Quando retornou a Placas, Maria ainda encontrou o lugar sem nenhuma estrutura para atendimento médico. Mesmo não recebendo um tostão pelo serviço que prestava, sua humanidade solicitava a continuidade do atendimento à comunidade. Com uma longa trajetória de doação ao próximo, no dia 24 de setembro deste ano, Maria foi lembrada carinhosamente durante cerimônia de inauguração do posto de saúde alternativa na cidade. 

A inauguração se deve à restruturação do espaço de acolhimento solidário de saúde, onde fora implantada a ‘Farmácia Viva’ da população, um lugar de profunda relação de troca a serviço da vida. Com o objetivo de fazer uso de forma sustentável de espécies nativas da Amazônia, possibilitando um conhecimento maior da comunidade sobre as plantas e seu uso adequado, a ‘Farmácia Viva’ integra o projeto “Cuidando da Vida no Bioma Amazônico”, desenvolvido pela Associação de Defesa dos Direitos Humanos e Meio Ambiente na Amazônia (ADHMA), com o apoio do Fundo Dema em parceria com o Fundo Amazônia.

A luta pela democratização da saúde

Com o crescimento da cidade de Placas, a única casa da Superintendência de Campanhas de Saúde Pública, antiga SUCAM, não dava conta de prestar atendimento ao contingente de pessoas adoentadas, enfaticamente com malária. A necessidade de construir outro espaço de saúde era grande. Em 1888, a comunidade se juntou, arregaçou as mangas e deu início à construção do primeiro posto de saúde, que começou a funcionar ainda de forma inacabada.

Entre usos e abandonos do espaço, em 2010, com uma reforma muito básica conquistada por meio de um projeto comunitário, o posto deu lugar a atendimentos com bioenergéticos e massagem. Porém, com instalações ainda precárias e muita obra por fazer, não foi possível dar continuidade às ações.

Em 2013, em reconhecimento ao trabalho que a Jupic vinha prestando à população, a assembleia das comunidades da paróquia local decidiu que o imóvel passaria definitivamente para o grupo da Pastoral da Saúde e da Criança, bem como a responsabilidade de sua reforma.  

Pe. Boeing explica o processo de colonização da Amazônia pautado nas desigualdades sociais e injustiça ambiental  

Diante de tamanho desafio uma indagação: “E agora? Com qual recurso que nós vamos reformar? ”, questionava Irmã Marialva Oliveira, agente de pastoral, cuja preocupação não durou muito tempo. Pouco tempo depois a oportunidade foi alcançada com a aprovação de projeto submetido ao Fundo Dema. “Através do clube de mães ficamos sabendo da 3ª Chamada do Fundo Dema e apresentamos o nosso projeto ‘Cuidando da Vida no Bioma Amazônico’. Esse projeto foi e voltou, mas nós fomos contempladas. Ficamos muito felizes. Alugamos outro espaço e mudamos enquanto esperávamos a liberação deste recurso. Demorou mas chegou””, comemora ela que também está à frente da coordenação do projeto.

Dentre as importantes contribuições dadas durante a inauguração do posto de saúde alternativa, Padre José Boeing, mestre em direito ambiental e desenvolvimento socioambiental pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), dialogou sobre a relação entre o processo de colonização da Amazônia e o apoio do Fundo Dema a projetos comunitários na região da BR 163 e da Transamazônica. De acordo com ele, o desenvolvimento de projetos que garantem os direitos das comunidades e o conhecimento tradicional está relacionado à resistência aos impactos de um modelo colonialista de dominação e exclusão social.

““A discussão desse projeto do Fundo Dema tem toda uma razão de ser. Começa por uma razão simples, participação comunitária versus modelo desenvolvimentista do Governo Federal ao longo da BR 163. Em 1966 houve o projeto de colonização da SUDAM, em 70 começaram a abrir as estradas. O projeto de colonização da Amazônia trouxe grandes consequências, violação de direitos, assassinatos, grilagem, desmatamento, mineradoras, hidrelétricas, pecuária, agronegócio, monocultivo da soja, tudo isso foi consequência deste modelo””, analisa Pe. Boeing.

Medicina popular por meio do conhecimento tradicional

Ameaçada pelo cientificismo racional e instrumentalizado, que muitas vezes ratifica a monopolização e inacessibilidade das drogas produzidas por laboratórios multinacionais, a medicina tradicional, além de reunir a pluralidade de saberes de diversas culturas, consegue democratizar o acesso a medicamentos, prevenindo o agravamento de doenças, reduzindo as chances de hospitalização. 

Diferentemente dos objetivos do capital financeiro, o conhecimento tradicional faz uso do aproveitamento de plantas nativas, bem como sementes, essências, raízes e frutos existentes nos quintais e jardins caseiros, sem a finalidade lucrativa garantida pela alta produtividade. O compromisso da medicina popular é, sobretudo, o de resguardo da vida. É para isso que as sete mulheres da pastoral da saúde estão voltadas. A serviço da saúde coletiva, estas mulheres, que ainda contam com a parceria de um massagista, têm se dedicado voluntariamente ao trabalho no “postinho” de saúde, como é carinhosamente chamado pela comunidade.

Agentes da Pastoral da saúde atuam no tratamento preventivo e curativo de doenças por meio da medicina alternativa

O atendimento no posto da pastoral da saúde se caracteriza pelas práticas integrativas e complementares, institucionalizadas no Sistema Único de Saúde (SUS) por meio da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde. Assim, ao chegar no posto, os pacientes contam com uma acolhida humanizada desde o primeiro atendimento, que considera o indivíduo em sua singularidade e suas vivências comunitárias com o meio ambiente e em sociedade.

“Cada pessoa recebe um atendimento de acordo com aquilo que ela precisa. As terapias que oferecemos são: floral, Reik[2], homeopatia, fitoterapia, massagem. Oferecemos também a escuta, porque às vezes a pessoa está precisando conversar e então ouvimos as suas necessidades. E se a gente percebe que aquele atendimento não é para nós, nós a encorajamos, incentivamos a pessoa a procurar o médico e se precisar de ajuda neste sentido, a gente ainda faz isso. A gente nunca segura um caso que não é para nós. E também jamais interferimos nas indicações médicas, sempre estimulamos a dar continuidade em seus medicamentos como os de pressão. Estimulamos as mulheres a fazer o preventivo, o pré-natal. Tudo isso faz parte do tratamento”, explica Ir. Marialva.

Atenção ao Bem Viver Coletivo

O projeto ‘Cuidando da Vida no Bioma Amazônico’ garante benefício direto a 11 famílias, umas localizadas no centro urbano, outras em agrovilas próximas. Entre estas famílias, seis possuem lote rural onde buscam cultivar a terra com consciência ambiental. Considerando a importância da biodiversidade e da prática da agroecologia, estas famílias possibilitam a extensão do projeto partilhando a matéria prima de suas áreas de cultivo para a produção de medicamentos.

Toda a cadeia de ação da saúde alternativa é pautada na experiência da fraternidade, da reciprocidade, do cuidado humanizado e do respeito aos recursos da natureza enquanto bem comum. Além de oportunizar o envolvimento de diversas famílias a partir do fornecimento de matéria prima e o estreitamento da relação entre o campo e a cidade, o projeto prevê ainda o cultivo totalmente orgânico de espécies nativas na hortinha estruturada ao lado do ‘”postinho’”, sem contar no planejamento do quintal e jardim ecológico que já é beneficiado pelo sombreamento de três oitizeiros.

Ir. Marialva relembra a trajetória de lutas e conquistas alcançadas para garantir o cuidado com a vida 

De forma a manter as famílias orientadas sobre os efeitos nocivos dos agrotóxicos e da adubação química, um curso de 40 horas, que alia teoria e prática, consta entre as atividades do projeto. As informações compartilhadas tratam do cultivo de quintais agroecológicos, da preparação e recuperação do solo, da importância da adubação orgânica, da cobertura verde, da produção de mudas e da criação de minhocas para a obtenção de húmus.

Duas oficinas também foram planejadas envolvendo as comunidades das famílias beneficiadas. Com o tema “Como as famílias das comunidades cuidam da saúde de seus membros e do meio ambiente onde vivem? O que sabem de seus direitos?”, as oficinas pretendem incitar reflexões acerca da construção do Bem Viver pautada na relação harmônica entre a natureza e a vida em comunidade.

Perspectivas para o futuro

Moradores de Placas comemoram a reestruturação do posto que vai ampliar o acesso da comunidade à saúde 

A partir da experiência local, o projeto visa o envolvimento de crianças e jovens com uma educação voltada à saúde, a partir da pedagogia do cuidado com o meio ambiente e com o aproveitamento dos espaços de seus próprios quintais, valorizando também o aprendizado com o legado de conhecimento e sabedoria deixado pelos mais velhos. Em parceria com as escolas, pretende-se contribuir com projetos pedagógicos voltados à educação ambiental, oferecendo o espaço da ‘Farmácia Viva’ para pesquisas escolares, abrindo possibilidades para a mudança de costumes e o despertar de novas atitudes de Bem Viver a partir do cuidado, da ação humana entre indivíduos e respeito à natureza.



[1] Dados do IBGE (2016)

[2] Terapia milenar reconhecida pela Organização Mundial de Saúde (OMS), caracterizada pela ação da imposição de mãos.


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