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15/05/2015
Por: Equipe Fundo Dema
Assunto: Notícias
Leitura: 10 minutos

Comunidade apoiada pelo Fundo Dema comemora resultados

 
Por Élida Galvão
 

 

Numa manhã de sábado, dezenas de barcos aportavam à margem direita do rio Arapiuns, bem à beira da comunidade São José I, localizada na Reserva Extrativista Tapajós-Arapiuns, que fica a oito horas de viagem fluvial saindo de Santarém. Era um dia festivo, com gente chegando das comunidades vizinhas para o Festival do Matrinxã, um peixe típico da região amazônica.

Mesmo não tendo sido previsto no projeto que originou a criação de peixe pela comunidade, o planejamento do Festival acabou sendo motivado pelo sucesso que vem tendo a atividade de piscicultura. À frente da organização, Lucivaldo Brito, mais conhecido pelas redondezas como “Seu Tabaco”, não conseguiu sossegar um instante até ajeitar tudo para que se fizesse valer o deslocamento de sua vizinhança.

Pessoas de comunidades vizinhas chegam para participar do festival de peixe

Ele é um dos responsáveis pela fundação da Associação dos Comunitários de São José I (ASCOJORA), que desde 1999 vem atuando em defesa da área da comunidade e, também, pela produção sustentável para atender as necessidades familiares e pela preservação do meio ambiente.    

Apesar de ter alguns membros à frente da Associação, o trabalho em comunidade é prioridade. Tanto que, no mês que antecedeu a festividade, Maria da Conceição, 28 anos, teve que dividir seus afazeres entre as tarefas rotineiras e os preparativos para o dia em que, com orgulho, exibia o que mais parecia troféu conquistado com o suor da coletividade. “Esses dias foram de muito trabalho. Toda a comunidade, a associação, trabalhou na limpeza do viveiro. Os homens foram limpar pra lá e a gente ficou aqui na capina, roçando, depois os homens vieram e a gente ficou trabalhando pra construção do palanque. A gente tá trabalhando há um mês, desde o dia 23 de março”, dizia ela se referindo ao festival, ocorrido em 18 de abril de 2015.

É com esse espírito, consensual e democrático, que o estímulo ao trabalho é desenvolvido e a produtividade garantida. Além da piscicultura, por meio dos “puxiruns” – que em tupi-guarani representa o mutirão para o trabalho coletivo – as 25 famílias que vivem na comunidade ainda desenvolvem experiências produtivas de recomposição de espécies florestais nativas da Amazônia, cultivo de hortaliças, criação de aves, criação de abelhas e produção de mel.                                                   

Maria da Conceição exibe com orgulho o troféu da comunidade   

O trabalho coletivo tomou força em 2005, com o projeto Produção Agroecológica na Comunidade São José I – Rio Arapiuns, voltado para a produção agroflorestal e a recomposição de Áreas de Conservação Permanente. Este foi o primeiro projeto apoiado pelo Fundo Dema na comunidade. Em 2012, esta parceria apoiou outro projeto, Piscicultura como Alternativa Sustentável, voltado para a criação de peixe. Alavancando mais ainda a piscicultura, no mesmo ano o projeto Mel e Peixe como Fontes Alternativas de Produção’ foi contemplado na Segunda Chamada Pública do Fundo Dema, em parceria com o Fundo Amazônia, totalizando três projetos apoiados.

Agroecologia

“Somente nessa manhã já vendemos mais de 47 quilos de peixe”, dizia orgulhoso seu José Brito de Souza, de 65 anos, que, entre pesagem e descamação de peixe, compartilhava a expectativa em vender ao final do dia os 350 quilos de pescado para a venda na festividade, ao custo de R$ 12 Reais o quilo.

Com uma produção de 2.800 kg de peixe em oito meses, o sucesso desta e das demais atividades produtivas foi alavancado com o projeto de produção agroecológica na comunidade. Um projeto que, em dez meses de execução, conseguiu implantar um sistema de irrigação para a diversificação da produção a partir de técnicas de consórcio de culturas e reflorestamento, além da implantação de Sistemas Agroflorestais com a aquisição e plantação de mudas em viveiros.

Ao todo, a comunidade conseguiu reflorestar uma área de três hectares com espécies nativas da Amazônia, localizada a uma distância de 12km do centro da comunidade. O grande potencial agrícola, especialmente nesta área que possui solo argilo-arenoso profundo e rico em matéria orgânica, foi o que motivou o desbravamento da trilha de acesso ao local, onde se chega a pé ou de bicicleta.    

Este potencial da terra favoreceu uma seleção natural de espécies arbóreas, que foram preservadas pelos moradores. Contudo, ao início do projeto, foram plantadas 100 mudas de Mogno, 80 de Ypê e 80 de Castanha do Pará. De acordo com Paulo Roberto dos Santos, morador da comunidade, além destas espécies, atualmente a área encontra-se reflorestada com Cedro, Andiroba, Cumarú, Frejó, Itaúba, Piquiá, Açaí, Jatobá, Jacandá, Copaíba e Bacaba. São espécies que oferecem frutos, óleos, madeira, além de propriedades medicinais.

Mas, apesar da fertilidade da terra, durante o verão as culturas sofriam com a falta de água, considerando que o igarapé mais próximo fica a três quilômetros dalí. Com o reflorestamento, foi necessário implantar o sistema de irrigação para a manutenção das culturas produzidas. Em parceria com o Centro de Apoio a Projetos de Ação Comunitária (CEAPAC) – organização que há 25 anos atua na região dando assistência técnica e orientação pedagógico-educacional às famílias rurais -, a comunidade conseguiu implantar o sistema de distribuição de água.

Orgulhoso em falar sobre o projeto que coordenou, Paulo Roberto Corrêa dos Santos destaca a importância do Sistema de Irrigação para o desenvolvimento de outros projetos. “O objetivo do projeto é irrigar para o verão. Hoje tem oito famílias com a roçada e que utilizam a irrigação do projeto. Com isso, são 32 pessoas beneficiadas. A irrigação começa na barragem do peixe e vai para as roças. Sentimos dificuldade no verão, mas hoje nós temos um bom acompanhamento do CEAPAC e estamos usufruindo do benefício. Nós vendemos a polpa do cupuaçu e a banana consumimos aqui mesmo. O Frejó, usufruímos a semente, que é vendida. Parte dessa semente fica no nosso viveiro e a gente distribui para os outros viveiros [de outras comunidades]. O efeito do projeto deu certo, aí nos animou para elaborar outros projetos”, diz.

Paulo Roberto explica como a agroecologia e o sistema de irrigação são desenvolvidos na comunidade

 

Piscicultura

Além de contribuir para a preservação do meio ambiente, para a melhoria, aumento e regularização da produção, a distribuição de água pelo sistema de irrigação também beneficia a atividade da piscicultura.

Aproveitando uma barragem construída anos antes em um igarapé, pensada justamente para a criação de peixe, a comunidade resolveu tocar para frente um projeto que inicialmente não havia dado certo por desacertos administrativos. Porém, com a estrutura inicial montada, em 2012 o segundo projeto da comunidade foi aprovado pelo Fundo Dema, o que daria início ao protagonismo do peixe matrinxã na região.     

A princípio a proposta era criar tambaquis, mas a orientação de um técnico do Instituto Chico Mendes (ICMBio), parceiro da comunidade no projeto, apontou que esta espécie de peixe não se adaptaria à acidez da água. Sem ter tempo para tristeza, os moradores de São José tomaram fôlego com a notícia de que o matrinxã iria suprir a necessidade.

Vídeo detalha o processo da criação de matrinxã em barragem 

Com o principal obstáculo solucionado, a projeção do empreendimento considerava não somente o aumento da renda familiar, mas também a valorização da natureza e a melhoria da qualidade de vida da população, enfrentando a insegurança alimentar com o consumo do excedente produzido.

“Pelo teste que nós estamos fazendo, essa foi uma boa ajuda do Fundo Dema. Já estamos vendendo peixe aqui mesmo para outras comunidades. Acho que nem vamos precisar sair daqui porque tá dando certo aqui mesmo. As pessoas marcam o dia e falam a quantidade que vão querer. O festival vem no sentido de chamar a atenção de outras comunidades que aqui a gente vende peixe”, diz novamente seu José Brito de Souza, mesmo com o olhar atento à venda do pescado durante o festival.

Participantes do festival visitam área em que são criados os peixes

Apesar de o morador considerar que a venda de peixe na comunidade já tem conquistado bons resultados, recentemente a ASCOJORA firmou o compromisso de fornecer cerca de 250 quilos de pescado por semana à peixaria mais famosa de Santarém. Não por acaso, antes do esvaziamento total do tanque, proporcional ao consumo dos peixes, foram colocados três mil alevinos no berçário para que a ampliação do empreendimento não tenha a chance de ser interrompida.   

Diversificação da Produção

Fortalecendo ainda mais as atividades produtivas da comunidade, a aprovação de outro projeto pelo Fundo Dema, desta vez em parceria com o Fundo Amazônia, prevê a ampliação da criação de peixe matrinxã por meio da construção da casa de ração alternativa; aumento da produção de mel de abelhas nativas, além da criação de tambaquis em gaiolas no curso do rio Arapiuns.

Ainda na fase de registro do marco zero, tendo iniciado em março de 2015, a expectativa é de construir cinco gaiolas para a criação de peixe e de que cada núcleo familiar consiga trabalhar com 50 meliponários. A casa de ração alternativa irá ajudar na retenção de gastos financeiros quanto à alimentação dos peixes. Com isso, estima-se que pelo menos 80% desta alimentação seja produzida artesanalmente com macaxeira, seringa, taperebá, acerola, carambola, entre outras.  

Pautada na melhoria da qualidade de vida das famílias, a iniciativa vem remediar o risco da insegurança alimentar, já que, devido ao baixo potencial pesqueiro do rio Arapiuns, determinados períodos do ano o peixe fica escasso demais, fazendo com que o preço do pescado se torne elevado. A criação de tambaquis em gaiolas prevê a garantia da alimentação das famílias e a comercialização a outras comunidades a preços justos e acessíveis.

Segurança Alimentar

Apesar de a piscicultura ser o “carro chefe” da atividade econômica da comunidade, as demais também protagonizam importante papel na área da segurança alimentar e nutricional. A criação de abelhas, por exemplo, tem se fortalecido bastante e o mel produzido é comercializado puro, sem ter passado por qualquer procedimento artificial. A ideia é que este mel possa ser inserido no cardápio da merenda escolar da única escola que há na comunidade. Além disso, os manejadores de açaí passaram a considerar a importância de harmonizar o manejo florestal com a criação de abelhas sem ferrão para manter ou aumentar a produção de frutos.

O plantio de mandioca resulta na produção média mensal de 50 quilos de farinha, que abastece tanto as mesas dos produtores, quanto os lares dos moradores da capital por meio da comercialização em feiras populares. Da mesma forma ocorre com a plantação de feijão, jerimum, melancia, banana, arroz e milho.

 

Seu Lucivaldo apresenta a área do meliponário

Os quintais familiares abrigam também porcos, patos e galinhas, alimentadas principalmente pela produção de milho. Parte destes pequenos animais é destinada ao uso doméstico e parte comercializada.

Sendo produzida de forma ambiental, econômica e socialmente sustentável, a diversidade das culturas é orgânica e sem agrotóxicos. Além de servir como fonte alternativa de geração de renda, destina-se à alimentação das famílias da São José e de comunidades próximas.

Mesmo diante de uma realidade onde o sistema alimentar tem sido cada vez mais dominado pelo monocultivo e pelo lançamento de alimentos ultraprocessados aos supermercados, a agricultura familiar, pautada no trabalho coletivo, na diversificação da produção, na preocupação com o meio ambiente e na saúde humana, é considerada a alternativa para que os lares brasileiros sejam abastecidos por uma alimentação saudável e nutritiva.

Com base nessa perspectiva e de acordo com as práticas sociais e ambientais de agricultura que vêm sendo desenvolvidas, a comunidade projeta uma parceria com a Cooperativa Extrativista de Santarém (ACOSPER) para a comercialização da farinha de mandioca. Além disso, por meio da Feira de Produção Familiar do Baixo Amazonas (FEPAM-BAM), as famílias têm disponibilizado seus produtos orgânicos em feiras locais e regionais.

Justiça Ambiental

A prática de reflorestamento realizada pela comunidade não estava pautada somente no aumento da produção a partir do plantio de madeiras nobres, mas também na recuperação de áreas férteis para a cultura permanente e preservação do meio ambiente.

Sem a proteção das matas ciliares, os rios e nascentes tendem a sofrer a escassez de água e o consequente assoreamento. Para o desenvolvimento das culturas produzidas pela comunidade, a disponibilidade de águe é fundamental. O reflorestamento às proximidades da nascente do igarapé Marauá, um afluente do rio Arapiuns, tem preservado a fonte de água que é distribuída para o sistema de irrigação e que garante o desenvolvimento das práticas agrícolas, mantendo, inclusive, o abastecimento hídrico da barragem onde são cultivados os matrinxã.

Sem contar que as espécies arbóreas, como a Castanha do Pará, Uxi, Copaíba, Piquiá, entre outras, geram grande quantidade de alimento, óleos e são responsáveis pela atração de dezenas de animais silvestres importantes para a cadeia alimentar, como cotia, tatu, paca, queixadas e onças.

Além do mais, sempre que uma área produtiva é implantada, os moradores buscam considerar as orientações da legislação ambiental e do Plano de Utilização da RESEX, no sentido de fortalecer a necessidade de implantação de áreas com culturas consorciadas e que possam contribuir para a preservação ambiental, redução de áreas desmatadas e também redução do fogo.

Os objetivos dos projetos contribuem para que o equilíbrio entre o homem e a natureza seja mantido. A diversidade das culturas e o manejo florestal comunitário possibilitam o respeito ao solo e usufruto dos benefícios florestais durante o ano todo, o que garante a permanência da renda familiar diante da alternância dos produtos. Os tratos culturais são cultivados com adubação orgânica, garantindo a qualificação dos produtos, a manutenção da saúde dos produtores e, consequentemente, dos consumidores.

Ameaças

Porém, essa realidade de valorização coletiva contrasta com o cenário de ganância e de grande injustiça social que acomete o Oeste do Pará. Constantemente, as comunidades tradicionais (ribeirinhos, pescadores artesanais, pequenos agricultores, quilombolas e indígenas) vêm sendo ameaçadas pelo avanço do agronegócio, pela monocultura, pela exploração ilegal de madeira, por grandes projetos hidrelétricos e empresas de exploração mineral.

As frentes de expansão capitalista no Rio Tapajós, por exemplo – a partir do planejamento do complexo hidrelétrico que prevê a construção de pelo menos cinco usinas no curso deste rio -, podem provocar grandes impactos socioambientais com alagamento de áreas, desalojamento de povos e comunidades tradicionais, alterações climáticas, dizimação da fauna e devastação da floresta nativa. Isso sem contar na viabilidade que este ‘mega projeto’ trará ao avanço da monocultura da soja e à exploração mineral na região, que ameaçam a agricultura familiar.

Desafios

Em 2014, a Organização das Nações Unidas (ONU) considerou o Brasil enquanto referência na América Latina no apoia à agricultura familiar. Contudo, mesmo sendo responsável por 70% da alimentação produzida no país, podendo ajudar na erradicação da fome mundial, a agricultura familiar brasileira ainda tem que lidar com a forte pressão do agronegócio.

Ação comunitária de reflorestamento ajuda a reduzir os impactos das mudanças climáticas 

Segundo a ONU, a agricultura familiar preserva 75% dos recursos agrícolas do Planeta.  Isso demonstra que o apoio a experiências como a de São José I se tornam cada vez mais importantes, tanto para garantir que os lares sejam abastecidos com uma alimentação saudável e nutritiva, quanto para a preservação ambiental na relação do homem com a natureza.

Em um tempo em que os recursos naturais têm sido oficialmente explorados a custo de muita injustiça social e ambiental, a luta contra este expansionismo desenvolvimentista se faz presente nas práticas coletivas de uso sustentável da natureza e também no apoio a projetos comunitários, que, mesmo com recursos mínimos e diante da burocracia para este acesso, vêm contribuindo para a segurança alimentar no campo e na cidade e para o equilíbrio ambiental e climático não somente da Amazônia, mas do planeta.

 

Saiba mais sobre os projetos:

http://migre.me/pRMbe

Veja mais fotos:

http://www.fundodema.org.br/fotos#1684

http://www.fundodema.org.br/fotos#1595