Notícias

07/06/2018
Por: Equipe Fundo Dema
Assunto: Notícias
Leitura: 7 minutos

Duas covas para Osvalinda e Daniel, lideranças ameaçadas no Pará

Por 


Policiais se recusaram a registrar um Boletim de Ocorrências para os defensores da floresta pedirem proteção (Foto de Daniel e Osvalinda/Arquivo pessoal)

 

Belém (PA) – Com baldes nas mãos, Osvalinda e Daniel desceram a estradinha que fica em frente da casa deles para colher maracujá, na zona rural do município de Trairão, no oeste do Pará, mas não conseguiram terminar a tarefa. Na manhã do dia 20 de maio, a cerca de 100 metros da residência, eles se depararam com uma ameaça mórbida: duas covas, cavadas durante a noite, cada uma sob uma cruz. “É uma imagem muito assustadora aquilo que a gente viu”, contou à reportagem da agênciaAmazônia Real, Osvalinda Maria Alves Pereira, 49 anos, sobre a ameaça contra ela e o marido, Daniel Alves Pereira, 47 anos, ambos agricultores. 

Ela é presidente da Associação de Mulheres do Projeto de Assentamento Areia, área destinada à reforma agrária e disputada por madeireiros e fazendeiros. A ameaça é uma entre várias deferidas no decorrer de anos em uma região estratégica, cercada por unidades de conservação. “Não vamos sair daqui”, assegurou a agricultora.

Osvalinda é também a principal liderança do Projeto de Assentamento (PA) Areia no qual, há 20 anos, cerca de 280 famílias produzem de modo sustentável, isto é, sem devastar a floresta. Arroz, feijão, milho, batata doce e outras culturas, sem agrotóxicos e livre de queimadas, estão distribuídos em 20 mil hectares. A 42 km da zona urbana de Trairão, o território do assentamento se estende ainda ao município de Itaituba. Dividido em duas vilas, o PA Areia foi dado como consolidado pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em 2002, situação em que “famílias estão aptas a seguir sua trajetória, não sendo mais necessária a ação e o acompanhamento tutorial do Estado”.

Mas o quadro do PA Areia foi modificado mais de uma vez nos últimos anos: em 2007, a Subseção Judiciária da Justiça Federal de Santarém deferiu medida liminar que interditou 106 projetos de assentamento, incluindo o PA Areia; em 2009, liminar da Justiça Federal retirou o PA Areia da interdição, mas o manteve na condição de consolidado. Apenas em 2015, o Incra decidiu anular a consolidação do projeto.

“O entendimento é que restavam ser cumpridas todas as condições para a consolidação, como investimento em infraestrutura, aplicação de créditos e titulação”, informou o Incra, que retomou a gestão da área. Agricultores denunciaram desvios de função do projeto, como fazendeiros e madeireiros ocupando as terras. Na área, uma só pessoa chega a concentrar 22 lotes de terra.

 

Ameaças rondam a casa

Duas covas foram abertas, cada uma sob uma cruz (Foto: Arquivo pessoal)

Entre madeireiros e fazendeiros, Osvalinda assumiu a defesa dos agricultores. E, em 2012, ela e o marido Daniel Alves Pereira passaram a ser ameaçados regularmente. “Perseguição, gente rondando nossa casa, seguindo até Trairão. Pessoas que vêm dentro de nossa casa ameaçar a gente, oferecer dinheiro, recado, carta. Tudo a gente já recebeu”, conta Osvalinda. “Mas, dessa vez, essa tirou nós dois do chão”, suspira a agricultora, se referindo ao par de covas abertas em seu quintal.

A insistência de madeireiros teria origem na atuação da Associação de Mulheres na localidade. Em 2010, a associação conseguiu acessar financiamento para ações de apoio às mulheres da comunidade, o que se tornou motivo de controvérsia, diz Osvalinda. “Porque os madeireiros e fazendeiros ficaram com medo de perder os funcionários deles.”

Em resposta, um grupo de madeireiros visitou as residências recolhendo assinaturas para um abaixo-assinado cujo objetivo era cessar a fiscalização do Ibama na área. “Mas não aceitamos. Ofereceram dinheiro, a gente não aceitou”, afirma Osvalinda. Na sala de sua casa, os pistoleiros lhe sentenciaram: “Pobre só merece a morte”. A agricultora disse não a um grupo de 12 homens, entre madeireiros e pistoleiros.

A visita foi o início de um cerco que culminou em dias de fuga e refúgio no município de Santarém, a cerca de 290 km ao norte de Trairão. Quando o grupo deixou a residência, Osvalinda foi à vila de São Mateus, nas proximidades, onde encontrou amigos. Eles pediam que a presidente da associação deixasse a comunidade. Naqueles dias, os rumores circulavam por todas as bocas: em um bar, pistoleiros falavam abertamente que matariam o casal.

Osvalinda e Daniel foram, então, à Delegacia da Polícia Civil em Trairão, mas os policiais, segundo eles, se recusaram a lavrar o Boletim de Ocorrência (B.O). Àquele momento, se iniciou uma jornada para escapar com vida da cidade.

Como medida de proteção, o casal se escondeu na casa do vice-prefeito à época, na zona urbana de Trairão. Os pistoleiros monitoraram a residência, esperando pela saída de seus alvos. À noite, o casal conseguiu um veículo que os levou ao prédio da prefeitura, onde ficaram escondidos.

Osvalinda conta que, da prefeitura, pegaram uma carona para o município de Itaituba, a 55 km. “De Itaituba, fomos para o barco, mas tinha outro pistoleiro lá dentro. Saímos do barco e fomos de lancha até Santarém. Ficamos escondidos. Só saímos para fazer a denúncia.”

A reportagem procurou a assessoria de imprensa da Polícia Civil do Pará, com sede em Belém. O órgão informou que não pode se manifestar sobre o motivo da recusa dos policias de Trairão em registrar o Boletim de Ocorrência para Osvalinda e Daniel.  “Uma vez que não foi formalizada queixa sobre a recusa de policiais em lavrar o B.O”, disse a assessoria.

 

Opositora dos madeireiros

Osvalinda com a produção de cacau (Foto: Arquivo pessoal)

Com o tempo, a associação se tornou opositora direta de madeireiros na região. O objetivo do grupo de mulheres era dar “condições de vida para os agricultores pararem de trabalhar para fazendeiro, de parar de explorar madeira, fazendo plantio dentro dos seus próprios lotes”, diz Osvalinda. Essa mudança de perspectiva acabaria com a mão de obra barata. “Porque a única solução que o povo tem hoje é trabalhar para fazendeiro, madeireiro, ganhando pouco”, completa ela.

No Trairão, as serrarias pagam R$ 30 por árvore extraída da mata. A espécie mais buscada na região é o ipê.  “Isso é uma exploração de agricultores que não sabe nem ler e nem escrever direito. E Isso é uma indignação pra gente aqui dentro. Nós somos contra”, dispara a presidente da associação de mulheres. Famílias que, para a Comissão Pastoral da Terra (CPT), “estão em situação de vulnerabilidade e violência. A maioria trabalha para os madeireiros. Os que não trabalham são vistos como ameaças aos madeireiros”, disse Elmara Guimarães, agente da CPT, que acompanha o caso.

A Comissão Pastoral da Terra (CPT) disse que Osvalina e Daniel estão incluídos no Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, do Ministério dos Direitos Humanos. O programa garante ao casal visitas regulares, a cada 15 dias, de guarnições da Polícia Militar e da Polícia Civil. “É complexo porque temos várias ressalvas com a própria polícia”, diz Elmara Guimarães, agente da CPT. Segundo ela, está em curso uma ação civil pública do Ministério Público Federal (MPF) para que o programa viabilize assistência em saúde ao casal.

 

A pressão sobre as UC´s

Daniel cultiva pés de banana na área sem devastar a floresta  (Foto: Arquivo pessoal)

A posição geográfica do PA Areia o transforma em porta de entrada para três unidades de conservação – e radicaliza os conflitos com madeireiros. Ao redor dos assentados, estão a Floresta Nacional de Trairão, a Reserva Extrativista Riozinho do Anfrísio e o Parque Nacional do Jamanxim. Madeireiros entram e saem pelas estradas de terra do Areia. “Para que possam fazer extração ilegal de madeira sem dar visibilidade, essa é a forma mais fácil de acessar. Por isso é estratégico”, explica Elmara Guimarãres. Segundo ela, os madeireiros já ocupam essas unidades de conservação.

O coordenador de fiscalização do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), André Luiz Martins Alamino, reconhece que a região é “alvo de muitas atividades ilícitas que causam impacto direto em unidades de conservação”, sobretudo a extração de madeira e palmito. Para coibir as ações ilegais, o ICMBio realiza atividades de fiscalização ambiental em toda a região da BR-163, diz André Alamino, num arco que vai da Reserva Biológica do Cachimbo ao Parque Nacional da Amazônia.

“Entretanto, devido à dimensão da região, é muito difícil manter equipes em todos os locais para manutenção da presença institucional”, lamenta Alamino. As três unidades de conservação ao redor do PA Areia totalizam 18.565 km², o equivalente ao território do Kuwait, na Ásia. O chefe da fiscalização afirma que, para superar essa dificuldade, o órgão realiza análises geoespaciais e de informações para indicação de alvos estratégicos das ações, como ocorre com a operação “Integração” de combate ao desmatamento na Amazônia.

 

Seis anos sem sossego

Desde 2012, a rotina mudou e a vida do casal ficou restrita ao sítio. “Seis anos sem sossego, sem conseguir dormir de noite, sem segurança”, desabafou Osvalinda. A renda da família também foi impactada, já que a agricultora teve de encerrar a atividade como revendedora de catálogo e roupas. “Foi o pior momento das nossas vidas. Você sentir, receber uma bala nas costas, na cabeça, sem saber de onde veio”, diz ela. A vida social praticamente se encerrou: deixaram de frequentar a igreja e de ir a festas. “Somos prisioneiros da nossa casa. Viramos prisioneiros de nossa terra. Não temos mais liberdade.”

Osvalinda e Daniel não são os únicos a serem ameaçados, mas os únicos a denunciar. “Várias são ameaçadas, porém o medo impera”, revela Elmara Guimarães. O caso ganha destaque, para a agente da CPT, em função dos projetos realizados pela associação de mulheres, “que podem quebrar essa dependência de famílias que vivem em condições análogas à escravidão”.

O ultimato foi denunciado por Osvalinda à Delegacia da Polícia Civil em Trairão, que investiga o caso. “No momento, nós não podemos falar nomes de suspeitos nem identificar ninguém porque está em fase de investigação ainda”, informou o delegado Ricardo Vieira Lima. Apesar do prazo legal de 30 dias para o término do inquérito, o delegado promete “concluir bem antes desse prazo”.

Mesmo com a tensão que circunda o casal, Osvalinda e Daniel mantêm o pé firme em seu lote de 100 hectares cultivados de domingo a domingo. “Nem eu e nem meu esposo vamos sair daqui.” Às margens da rodovia BR-163, o sítio Nova Esperança manda um recado ao Trairão: “Nós não vamos desistir da luta, nós não vamos desistir dos agricultores. Nós vamos continuar trabalhando e lutando.”

Sítio Nova Esperança, em Trairão (Foto: Arquivo pessoal)