Protagonismo das mulheres contribui para a segurança alimentar
Élida Galvão
Fundo Dema
A caminhada era longa, uma média de 3km a pé diariamente para chegar ao local de trabalho. Mas foi dessa forma que algumas mulheres de Uruará, município localizado no Oeste do Pará, iniciaram a concretização de um sonho pautado na autonomia e independência financeira. Com um pouco mais de 45 mil habitantes, a cidade sedia uma das fábricas de maior produção de polpa de frutas da região, resultado do instigante trabalho desenvolvido por mulheres que arregaçaram as mangas e mesmo enfrentando diversas dificuldades, hoje, se não são o esteio da família, contribuem para o sustento dela.
Depois de três anos produzindo polpas de frutas de forma semiartesanal, em 2006, as mulheres da Associação Dom Oscar Romero (AMDOR) iniciaram o projeto “Estruturação e Fortalecimento do Sistema de Manuseio e Comercialização de Polpas de Frutos Nativos de Uruará”, aprovado no IV Edital lançado pelo Fundo Dema. Em parceria também com o Serviço Brasileiro de Apoio à Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), Comissão Executiva do Plano de Lavoura Cacaueira (CEPLAC), Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Uruará (STTR-Uruará), Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER), as mulheres da AMDOR conseguiram transformar um cenário de poucas oportunidades em uma realidade empreendedora de grande sucesso.
A reestruturação da fábrica – que hoje é a maior empresa de polpa de frutas da Transamazônica com a marca Amdor Fruits – possibilitou a ampliação da produção, a geração de renda, o dinamismo da economia local, a valorização das frutas nativas e a contribuição para a segurança alimentar e para a autonomia das mulheres. E o empreendimento não para por aí, brevemente essas mulheres estarão somando à ocupação diária a atividade de corte e costura e a produção de multimistura nutricional para o combate à desnutrição infantil.
Protagonismo feminino
A renda de casa aumentou e não tem mais aquela coisa de pedir para o marido. Agora é o marido que pede pra gente, diz com uma bela risada Maria Iraci, de 54 anos. Comemorando a fase atual, o grupo relata com orgulho a trajetória de muita determinação iniciada em 1998, quando fundaram a Associação – que homenageia um padre com importante histórico de luta na região -, com o objetivo de capacitar mulheres ao trabalho para que pudessem ganhar e fortalecer a autonomia.
O conhecimento era pouco, mas a vontade era imensa. Iniciaram o trabalho com costura e pintura. Sem nenhuma técnica, as que sabiam mais ensinavam as que sabiam menos e assim foram levando, vendendo o que era produzido para juntar dinheiro para fundar a associação. Já com a associação fundada, começaram a cultivar uma horta comunitária. O que era produzido era distribuído ali mesmo entre o grupo para a alimentação familiar.
Dois anos depois, as mulheres da associação começaram a produzir uma multimistura – composta pelo pó da macaxeira, farelo de arroz, fubá de milho, farinha de castanha, gergelim, casca de ovo e semente de abóbora -, que era uma fórmula idealizada pela médica pediatra Zilda Neumann, fundadora da Pastoral da Criança, em parceria com uma congregação católica de irmãs franciscanas. Essa multimistura passou a ser vendida à Secretaria de Saúde e era destinada a programas de combate à desnutrição. “Uma vez veio uma menina de Altamira, despachada dos médicos e quem tratou dela, abaixo de Deus, fomos nós com a multimistura”, se orgulha Maria Iraci.
Em pouco tempo passaram a trabalhar com a comercialização da polpa de frutas de forma experimental. No início a produção era pequena, rendia uma média diária de 20kg. Colocavam uma bacia na cabeça e saiam vendendo o produto na cidade. Em 2006 tiveram a oportunidade de fortalecer o empreendimento com a provação do projeto pelo Fundo Dema. Conseguiram comprar os primeiros maquinários e a partir daí a produção só foi aumentando. Agora a gente pode dizer que é tudo empresária, brinca Rosângela Lopes, de 32 anos.
Às seis da manhã já estavam de pé rumo às roças de cacau. A garrafinha de café e a marmitex eram as companhias diárias no caminho duplamente percorrido. A desistência vinha diversas vezes à cabeça, mas a persistência conseguiu anular até mesmo a descrença dos maridos. Quando a gente trazia cacau, a gente chegava e ainda ia quebrar pra tirar a polpa. Um dia eu cheguei na minha casa umas dez horas da noite e tomei até um susto. O meu marido tava na área do escuro e quando eu tava entrando ele perguntou bem assim isso é hora de chegar pra trabalhar de graça?. Mas agora, ele pergunta tu não vai trabalhar hoje não?. Agora mesmo ele está desempregado e quem tá montando a casa sou eu, diz orgulhosa Suely Lima, de 37 anos.
Sobre a produção
A associação é composta por 25 mulheres. Atualmente, sete associadas atuam na fábrica de forma assalariada. As filhas das próprias mulheres atuam como jovens aprendizes. As demais associadas têm direito de levar cinco quilos de polpa a cada mês.
Com o recurso do Fundo Dema as mulheres conseguiram comprar a máquina processadora de açaí, um freezer, diversos utensílios, materiais de escritório e também reformar a caminhonete que auxilia no transporte das frutas e dos produtos. A medida em que foram adquirindo novos equipamentos foram aumentando a produção de polpa, aí a meta passou a ser de 185kg por dia. Acerola, açaí, cupuaçu, cacau, maracujá, manga, graviola, abacaxi e taperebá são matéria-prima para a produção de polpas, mas de algumas delas fazem também geleia, licor, e bombom de chocolate.
Atualmente, a produção mensal de polpa é de seis toneladas, mas estima-se que em 2016 essa produção seja duplicada com a inauguração da nova fábrica, que está sendo construída em terreno próprio da AMDOR e o que irá possibilitar a saída do aluguel e aumento da renda.
Esse é um sonho que no início era uma tempestade de ideias. Em 2009 nós colocamos pra atingir isso em dez anos, então nós estamos atingindo esse sonho de dez anos dentro de cinco anos. O nosso sonho se antecipou porque nós fomos muito persistentes, buscando os parceiros certos pra apoiar e se não fosse o Fundo Dema, que lá no início, lá atrás acreditou e deu o primeiro incentivo, a gente talvez não estaria aqui hoje, então pra nós é muito gratificante, comemora Shirlleyd Santos, atual presidente da associação, relatando a trajetória diante das dificuldades e de tanta burocracia enfrentada.
Com o progresso da produção na nova fábrica será possível também ampliar o mercado, já que as mulheres estão em vias de conseguir o selo do Serviço de Inspeção Federal (SIF), do Ministério da Agricultura, que garante a procedência do produto. Quando a gente usar as embalagens do SIF, nós vamos entrar em uma rede de comercialização pelo SEBRAE e creio que a gente vai aumentar aí mais de 20%. Isso já no primeiro ano com a fábrica funcionando a todo vapor. Do segundo em diante já vai ser bem maior essa produção, planeja a presidente.
Indiretamente, a fábrica tem beneficiado de forma rentável cerca de 150 famílias da agricultura familiar, além do benefício direto às famílias das sete associadas que atuam na atividade. A polpa produzida é destinada a escolas municipais, estabelecimentos comerciais, a hotéis e restaurantes da cidade.
De acordo com Shirlleyd, o grupo planeja ainda usufruir do espaço da nova fábrica como uma unidade demonstrativa para produção de frutas em consórcio. Este consórcio de frutas será com seis variedades perenes e não perenes, de variados calendários. Assim, o produtor terá produção e renda nos doze meses do ano e a fábrica terá variedade de frutas e matéria-prima local. A área de plantação será de dois hectares por família. A Secretaria de agricultura já vai começar a produzir as mudas em agosto e janeiro para o agricultor plantar. Ganha o agricultor de um lado e a fábrica de outro, diz.
Parceria com políticas públicas para garantir a segurança alimentar
Tendo adquirido o selo de inspeção pelo Ministério de Agricultura, que garante o controle de qualidade da produção, a associação passou a integrar o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), por meio da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Com a entrada nestes programas voltados à economia das organizações de agricultores familiares, houve a necessidade de produzir mais polpa e por consequência aumentou o número de famílias fornecedoras.
Integrando o PAA desde 2010, com o terceiro projeto sendo executado, a AMDOR comercializa parte de sua produção de polpa para a Conab, o que atualmente chega a uma rentabilidade de cerca de 150 mil Reais ao ano. Na avaliação de Alexandre Sidon, analista da Conab no Pará, a AMDOR deu um grande passo ao conseguir se adequar às exigências do Ministério da Agricultura, porque isso amplia as possibilidades de alcançar os mercados institucionais.
As exigências do PAA, PNAE e outros mercados institucionais é de que as organizações cada vez mais se especializem, como a AMDOR tem feito, que conseguiu o registro do Ministério da Agricultura. Sem esse registro ela não participaria mais do mercado do PAA. Isso é um diferencial muito grande, porque além do PAA pode negociar sua produção com a merenda escolar e até mesmo com o mercado normal fora do Pará. Foi de fundamental importância o nível de excelência que chegou a AMDOR, porque cada vez mais vai conseguir congregar famílias de agricultores familiares para alcançar mercados e alcançar a melhoria de vida de seus associados, declara Alexandre.
Um desafio a ser superado
Mas apesar de destinar quantidade considerável de polpa às escolas, a Conab não consegue garantir que a alimentação chegue a todos os alunos da rede pública da cidade. Com cerca de 1.200 alunos, o Instituto Educacional de Uruará, por exemplo, é uma das escolas beneficiadas com a polpa de fruta por meio do PNAE. O suco é servido no lanche uma vez por semana em dois turnos. Porém, apesar de considerar de extrema importância para a alimentação dos alunos, a vice-diretora do Instituto, professora Ivone, afirma que a cota anual de dois mil quilos de polpa destinada por meio do programa federal não é suficiente para atender a demanda.
Nossos alunos são carentes, são de baixa renda, e muitas vezes a vitamina que eles ingerem é essa que vem da polpa de frutas. Muitos alunos têm essa única refeição no dia, então a escola procura oferecer o melhor. É muita merenda, é muito aluno. A gente tem que fazer de oito a dez quilos de polpa por cada período servido. Se a polpa é mais condensada, como o cupuaçu, aí dá pra fazer render mais, argumenta a vice-diretora de uma das três escolas do município contempladas por meio do PNAE.
Dinamizando a economia local
Vindos da Paraíba durante a abertura da Transamazônica, na década de 70, o casal de agricultores Raimundo e Antônia Barbosa fincaram raízes em solo paraense, formaram uma família e, desde então, vem sustentando seus filhos e netos por meio da agricultura familiar. Com uma plantação diversificada na chácara localizada no Km 175, ao Sul de Uruará, onde cultivam acerola, macaxeira, laranja, limão e coco, o casal foi estimulado a comercializar fruta para a AMDOR em razão da propagação sobre o trabalho das mulheres no município.
As acerolas eram desperdiçadas no quintal antes de o casal paraibano ter conhecido o trabalho da AMDOR
Antes do fornecimento de acerola, a fruta caída garantia somente o enfeite do terreno e o suco nas refeições. Porém, há três anos, sempre que ocorre a safra de acerola, a família toda se reúne para coletar o fruto que chega a render cerca 140 quilos ao dia e é fornecido por R$ 2 Reais o quilo.
“Na última safra chegamos a coletar oitocentos e poucos quilos de acerola. A gente coloca nos baldes e bacias e aí meu esposo vai entregar lá no carro que a gente tem”, diz D. Antônia que comemora o beneficiamento familiar com o fornecimento do fruto. “Pra nós é muito bom, ajuda bastante. Antes, quando a gente não comprava ficava tudo destruído aí no chão. A partir do momento que a gente descobriu que elas compram e a gente pode vender pra elas, foi bem melhor pra nós. Por exemplo, ajuda na despesa de casa e na compra de adubo”, complementa.
Agroecologia e sua diversidade na Amazônia
Residindo à margem da Transamazônica, na altura do quilômetro 170, seu Antônio Mauro Costa e seus dois filhos são responsáveis pela manutenção de dois lotes com 100 hectares cada. Dividida em três unidades familiares, a família toda se dedica às tarefas diárias de plantio de açaí, acerola, abacaxi e cupuaçu, além da criação de gado e peixe.
Com uma área de quatro hectares com mais de 500 pés de açaí, semanalmente seu Antônio fornece uma média de 500 quilos da fruta à fábrica de polpas. Com isso, consegue arrecadar em torno de R$ 600 Reais por mês, o que, segundo ele, ajuda bastante no orçamento família. “Antes quando não tinha a associação era mais difícil, a gente não tinha um incentivo. Hoje a gente tem um incentivo, vende, o dinheirinho é na hora e já ajuda bem no orçamento da família”, enfatiza.
Assim como Antônio, seu Josué Storch também fornece açaí, e ainda cacau, para a AMDOR. Por meio do manejo sustentável consegue manter a produção dos frutos e cereais cultivados, como laranja, banana, acerola, coco, pupunha, limão e milho. Além disso, possui uma pequena horta hidropônica e uma pequena criação de peixes, galinhas e abelhas.
Com a diversificação de culturas mantida em seu terreno, Antônio possibilita a diminuição de riscos de pragas e com variações climáticas e, por consequência, menos riscos econômicos que garantem a sobrevivência de sua família. Também, como respeitam a sazonalidade do cultivo, ao contrário da monocultura, conseguem evitar a ocorrência de erosão do solo.
Josué Storch fornece cacau e açaí e garante que a parceria beneficia as duas partes
Na última colheita que fez em seus 2.500 pés de cacau, Josué forneceu 800 quilos à fábrica. Do fruto são retiradas a polpa e a amêndoa para a produção de chocolate para os bombons recheados.
Outra lucratividade garantida é com o açaí. A hora que ele chegar com suas latas na AMDOR, consegue vender no ato por uma quantia de R$ 25 Reais cada. “O açaí é dinheiro vivo. A colheita é mais fácil, prática e dá menos trabalho do que o cacau. Quanto de açaí eu produzir tenho elas ali prontas pra comprar. Não tenho aquela preocupação de plantar mais e encher o mercado, porque o que eu produzir elas me compram. É mercado garantido”, diz.
Ampliando o empreendimento
O sucesso do projeto foi tão grande que em 2014, com a abertura da 3ª Chamada Pública, a AMDOR apresentou mais uma proposta ao Fundo Dema. Tendo sido aprovado e com o contrato em vias de ser assinado, o “Mulheres Empreendedoras” é um projeto que objetiva fortalecer a atividade protagonizada pelas mulheres na fábrica de polpa.
A meta agora é perfurar um poço artesiano na área da nova sede em construção, para a obtenção de água potável para o consumo, e também reformar a única caminhonete utilizada para transportar as frutas dos fornecedores e o produto aos mercados. As mulheres ainda pretendem investir na comunicação, tanto para divulgar o projeto de forma eficiente, quanto para possibilitar a diversificação e democratizar o acesso de famílias fornecedoras de matéria-prima.
De forma a ampliar os negócios e com o objetivo de gerar emprego para outras associadas da AMDOR, a nova sede já conta com um espaço para a produção da multimistura nutricional e outro onde brevemente será instalada uma malharia para atividade de corte e costura.
Impactos de Belo Monte sobre a agricultura familiar
Apesar de estar bem próximo à faraônica obra da Usina de Belo Monte, distante à aproximadamente 190 km de Altamira, cidade polo da construção da hidrelétrica, Uruará é um dos municípios que tem sofrido diretamente os impactos socioambientais da obra que conseguiu arrancar boa parte da mão-de-obra da agricultura familiar.
Herdando as consequências da destruição ambiental com a construção da barragem, os agricultores tiveram que acatar as imposições do governo federal para o ‘desmatamento zero’. Sem licença para explorar áreas para o plantio e com o acesso às linhas de crédito sendo cada vez mais dificultado, a produção passou a declinar, principalmente na lavoura de arroz, feijão, milho e mandioca, que são as plantações de sustento alimentar.
Desmotivadas, sem ter como produzir para viver, muitas famílias agricultoras abandonaram suas propriedades e migraram para a área urbana de Uruará, para Altamira e até mesmo para outros estados. Sem opção, outros tantos agricultores tiveram que ir trabalhar na obra da usina. Por consequência, os problemas sociais provocados pelo inchaço populacional na cidade têm sido percebidos de forma bem visível pela população.
“Para o agricultor, mesmo as oportunidades trazidas pela barragem chegou para a minoria. A maioria está colhendo as desgraças deixadas por ela. Aqui em Uruará não tinha mendigos na rua e depois de Belo Monte o calçadão vive cheio, assalto, violência de todo tipo, estrupo de mulheres e contra crianças também”, lamenta Shirlleyd no tempo em que dialoga sobre as contradições do projeto que já está provocando transformações negativas na vida de povos tradicionais e no ecossistema da Amazônia.
Assista o vídeo produzido pelo Fundo Dema sobre o projeto